Tempos de pandemia: da polarização tecnofilia versus tecnofobia, a uma abordagem efetivamente crítica das TDIC
Por Marina Bazzo*
Nessas duas primeiras décadas do século XXI, as tecnologias digitais de informação e comunicação (TDIC) passaram a estar no centro dos debates e das políticas educacionais. A pandemia da Covid-19 colocou uma lente de aumento na relação das TDIC com a educação, nos mostrou a urgência desta questão e explicitou o quanto os educadores devem estar envolvidos nas decisões que as concernem.
Pandemia; as TDIC, os professores e suas formações
A atuação dos professores já vinha sendo fortemente permeada e condicionada pelas TDIC. A pandemia atingiu em cheio esse trabalho. Com a Covid-19, as TDIC representaram “a” possibilidade de continuidade das atividades docentes. Afinal, escolas e universidades precisaram interromper suas atividades presenciais e uma alternativa se impôs: realizar aulas de modo remoto com suporte de plataformas online. Tudo isso ocorreu, sublinhe-se, em um contexto distópico de crise sanitária e de orientações erráticas das políticas públicas.
Tal quadro evidenciou os enormes desafios de infraestrutura ainda existentes. Para o país, escancarou-se a enorme carência de acesso a estas tecnologias, em especial à internet, por grande parte da população. Quem teve acesso pôde, de alguma forma, continuar na escola, quem não teve, ficou de fora, mais ainda do que já estava. A desigualdade e a pobreza foram escancaradas e aprofundadas na pandemia.
Dentro das instituições, especialmente nas escolas, ficou explícita a ausência de suporte técnico e de apoio às iniciativas de uso das TDIC no ensino. Num cenário de abandono institucional, os professores foram responsabilizados por toda a gestão tecnológica das salas de aula online e seus recursos.
Vivenciaram desafios pessoais, inseguranças e a exposição do seu trabalho. Conviveram com julgamentos e com seus próprios preconceitos em relação ao ensino mediado por TDIC. Enfrentaram um aumento da sobrecarga de trabalho gerado pelo planejamento e pelo desenvolvimento de atividades educativas mediadas por estas tecnologias. Experienciaram desafios pedagógicos que vão desde a dificuldade em fazer a transposição dos conteúdos das disciplinas para a mediação com tecnologias (o que é piorado pelo desconhecimento das potencialidades pedagógicas das TDIC para o contexto específico do que se ensina), até a possível incompatibilidade dos tempos e espaços previstos no currículo com as propostas de ensino mediado por TDIC. Esse todo tornou cristalina a ausência das TDIC – como meio e como conhecimento – nos currículos já consolidados dos cursos de graduação, especialmente naqueles de formação de professores e na formação continuada.
Pandemia; as TDIC e a mercantilização da educação
Temos apontado as tentativas de entrada de grandes empresas, por meio de pacotes instrucionais digitais fechados, no setor educacional. Da mesma forma, denunciado a expansão violenta da educação como mercadoria, via EAD nas instituições privadas e via sistemas educacionais online. Ainda, os processos mais recentes de “datificação” e “plataformização” da educação. Trata-se da disseminação de práticas de massificação do conhecimento alinhadas com as políticas neoliberais, com pouca ou nenhuma participação dos sujeitos do processo educativo: professores e estudantes. Além disso, observamos que, quando vinda “de cima para baixo”, a entrada das TDIC no chão da escola (ou na sua “nuvem”) acaba sendo efetivada muito mais como um instrumento de gestão do que pedagógico, para controlar o trabalho docente mais do que para ensinar ou aprender.
O que se constata, no contexto pandêmico, é que há uma feroz intensificação da ofensiva das grandes empresas de tecnologia, principalmente sobre as escolas públicas. Isso ocorre no vácuo deixado pelas instituições de pesquisa brasileiras que poderiam ou deveriam ter ocupado, há décadas, o espaço de discussão e de concepção das tecnologias para – e da – educação. Diante da crise, empresas como a Google oferecem seu “pacote educacional” como “a solução” de tecnologia, para a gestão, para os processos pedagógicos, para a comunicação, para tudo! E, elas dizem: “de graça”. “Basta concordar” com suas políticas de dados. No desespero e na ignorância, contratos são firmados, desconsiderando o exato significado da referida concordância.
Pandemia; as TDIC, os professores e suas posições
É revelador o que aconteceu nas universidades e escolas públicas brasileiras em relação à política de TDIC durante a pandemia. Enquanto os professores debatiam se iriam ou não realizar remotamente as atividades de ensino, as “redes” e universidades fechavam contratos com a Google para “solucionar” as suas carências de tecnologias. Em seguida, os mesmos professores se mostravam felizes com as facilidades, com o espaço de armazenamento, com ferramentas mais amigáveis ou que funcionam melhor (o que é bem questionável). Poucos se perguntaram: em troca do que, mesmo? Porque a resposta incomoda: da nossa soberania; da propriedade de nossos dados. Não só pessoais, o que já é bem sério, mas também os estratégicos, se pensarmos que trabalhamos em instituições que produzem conhecimento, ciência, tecnologias…
Neste debate, nós, educadores, precisamos superar a dicotomia tecnofilia versus tecnofobia. Exceder a polarização entre a visão salvacionista e a rejeição absoluta, pois estamos deixando de fazer a discussão que importa: SE e QUE tecnologias queremos para a educação, para nossa universidade ou para nossa escola?
Por que? E para que? Nós, educadores, precisamos analisar profundamente as TDIC. Que tecnologias são essas? Quem as produz? Como são feitas e para que? Como são distribuídas e regulamentadas? Qual o interesse das corporações no setor educacional? Que valores educativos elas carregam e difundem? Que visão de sociedade promovem?
A crise sanitária que vivemos tem nos impulsionado a traçar uma terceira via, mais construtiva, que não demonize nem endeuse as tecnologias. Uma abordagem crítica que reconheça que estes artefatos e processos não são neutros – sim, eles possuem valores e intencionalidades! –, mas que também admita a possibilidade de controle humano acerca de seu desenvolvimento e de seu uso na sociedade atual. Como educadores, repito, nós precisamos (re)pensar, (re)fazer, (re)inventar as tecnologias da e para a educação. E, além disso, (res)significar qual o nosso papel em relação às TDIC e seus processos na sociedade.
* Marina Bazzo Espíndola é professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica (PPGECT) e ao Mestrado Profissional em Rede Nacional em Ensino de Biologia (PROFBIO). Doutora em Educação, Gestão e Difusão em Biociências pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2010), realizou pós-doutorado em Educação na Universitat de Barcelona (2021-2022). Atuou na coordenação colegiada do LANTEC CED/UFSC de 2011 a 2016. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Formação de Professores, Educação Científica e Tecnológica, Tecnologia Educacional e Educação a Distância. É mãe desde 2013.